
Há inúmeros tipos de amigos que fazemos no decorrer da vida. Arrisco a dizer que se configuram tantos quantas relações de amizade existirem entre nós. Esta sobre quem escrevo é do tipo que divide as dores da existência.
Nos conhecemos por ocasião do mestrado, período de insuportável desassossego, não fossem os vínculos entre nós e os pares. Desde aquela época estabelecemos a rotina de tomar café juntas para compartilhar o que nos transbordava. Iam as duas angústias, a dela e a minha, e nos intercalávamos entre um gole e outro, ora de café ora de alguma outra bebida mais forte, para falar/ouvir, desabafar/conter, duvidar/apoiar, num ritmo próprio, um tanto melancólico, que fomos estabelecendo.
Assim seguimos por dois longos anos, em um período em que a programação da Universidade estava on-line, ainda sob resquícios da pandemia. Por sorte, e muito investimento psíquico, esta amizade tem se conservado no virtual e no presencial. Adicionamos algumas pitadas de desespero com a clínica, quebra de ideais, dúvidas quanto à docência, sempre com um gosto meio amargo que sobressalta nos assuntos divididos. De tempos em tempos, marcamos de encontrar em novos/repetidos cafés para partilhar as novas/repetidas angústias.
A questão da vez foi sobre o processo de formação em Psicanálise. Agendamos, comparecemos e nos desfalecemos uma na frente da outra, assim como de costume. Deixamos transbordar os sentimentos de impotência e indecisão, criticamos a rigidez da IPA, das instituições e do autoritarismo. E assim, seguimos num rol de angústias a serem partilhadas. Competíamos sobre o que havia de pior neste cenário e produzíamos uma verdadeira tempestade psíquica. Em um momento em que eu já não via mais saída para a humanidade diante daquele caos que instauramos, ela calmamente tomou um gole de café e olhou nos meus olhos. Acho que viu ali a fragilidade de uma menina ainda com medo no novo. E na segurança de quem decifrou o olhar do outro, enquanto tomava a bebida quente, me disse sorrindo: – Deus me livre da vida ser todo esse caos que a gente pinta aqui né, vamos pedir um bolo? Aceitei o convite aliviada.
E assim como quem chama para a brincadeira, o lugar que escolhemos parecia uma casinha de bonecas, foi arrumando a mesa e os objetos espalhados (celular, livro, bolsa- nossos brinquedos?). Então fizemos o pedido ao garçom: – bolo de chocolate, pão de queijo e mais duas xícaras de café, por favor. Éramos ali, uma para outra, duas crianças no sentido psicanalítico de viver as emoções. Brincamos com as palavras, saboreamos a comida e conversamos sobre as futilidades do cotidiano. E ao final daquele encontro já não existia mais angústia transbordando em nós, ainda que no concreto nada tivesse resolvido.
Existem amizades que são para nos aquecer em dias de tempestades e para nos lembrar de que a vida vale a pena quando se tem alguém para partilhar as dores. Há ainda um tipo mais raro, que ao olhar atentamente o outro, dá contorno ao caos e nos convida a brincar, transformando a amargura em um doce mais palatável. Que sorte a minha experimentar os sabores da vida com esta amiga!