Era o último dia de seminário do semestre. Sentíamos um tanto cansados pela densidade dos conteúdos e quantidade de leituras, mas também gratos por termos tido uma boa transmissão no decorrer dos meses. Estávamos cheios, bem nutridos. O grupo ia naquele movimento de encerramento, e eu no embalo, já satisfeita, não esperava nada de novo. Até que ouvi o seguinte comentário da coordenadora: “Se vocês têm a possibilidade de fazer uma formação fora da IPA é graças à atitude de Lacan, quem primeiro rompeu com esses padrões.” Como um despertador, esta frase me tirou do ritmo da despedida e ficou ecoando em mim. Uma vez despertada, venho neste espaço para digerir o conteúdo que se recusou a terminar com as aulas. Conto-lhes um trechinho da história do movimento psicanalítico.
Em 1902, Freud começou a reunir com alguns colegas para compartilhar e transmitir a psicanálise. No início eram 5 integrantes, mas com o tempo o grupo foi aumentando, entre eles estavam Otto Rank, Karl Abraham, Carl Jung, Ernest Jones, Sandor Ferenczi. As reuniões ocorriam em Viena, sempre às quartas-feiras, 20:30h, após o encerramento dos atendimentos. Graf descreve como eram o cronograma: “Primeiro, um dos membros apresentava um trabalho. Em seguida, café preto e bolos eram servidos; charutos e cigarros estavam à mesa e eram consumidos em grandes quantidades. Após um quarto de hora social, a discussão começava. A última e decisiva palavra era sempre dita pelo próprio Freud.”
Com o passar dos anos, o que era um encontro de colegas com petiscos e conversas informais na casa de Freud, foi ganhando contornos mais formais. Surgiram as atas, os registros de presença e as mensalidades. Assim, o grupo virou a Sociedade Psicanalítica de Viena. O salto para a formalidade se deu em 1910, durante o congresso de Nuremberg, com a fundação oficial da IPA (Associação Internacional de Psicanálise). De acordo com o próprio site, seu objetivo inicial era criar uma rede internacional que unificaria e promoveria o crescente campo da Psicanálise, além de regulamentar a formação de futuros analistas e evitar distorções e descaminhos com a expansão de sua prática. O que começou com cafés e charuto na casa de Freud, passava agora para reuniões formalizadas e jantares harmonizados. E assim, mesmo com as guerras mundiais, o movimento psicanalítico foi crescendo, ganhando corpo e se expandindo.
Décadas mais tarde, em terras francesas, Lacan começou a questionar a forma de transmissão e atuação dos psicanalistas. Em sua opinião, no decorrer dos anos ela havia se enrijecido e afastado perigosamente da letra do texto freudiano. Sua proposta? O ensino baseado no “retorno a Freud. Apesar de ser considerado um grande intelectual fora do círculo psicanalítico, seus trabalhos não eram validados dentro da Sociedade Psicanalítica de Paris e suas críticas causavam irritação nos pares.
Após ter sido expulso pela IPA, Lacan atraiu muitos alunos, fascinados pelo seu ensino e desejosos em romper com o estilo psicanalítico da primeira geração francesa. Ao longo da história três grandes rompimentos marcaram a Psicanálise francesa: em 1953 com questão da análise leiga e a duração de sessões; em 1963 o qual resultou na criação da Escola Freudiana de Paris (EFP); e em meados de 1980 com a dissolução da EFP e dispersão do movimento lacaniano em mais de vinte associações.
Pelos caminhos árduos, mas também férteis, a Psicanálise vem se expandindo e ganhando novas formas de existência. Hoje, não possuímos um modelo único de transmissão ou clínica e isso é em grande parte aos que souberam questionar os padrões. Também não sou adepta a nenhuma grande escola, seja freudismo, lacanismo ou qualquer outro local rígido. Daí minha admiração pela formação plural, que prioriza as bases conceituais e as transformações da Psicanálise no contemporâneo, considerando o contexto sócio-político-histórico.
Fica aqui, então, o meu agradecimento à Lacan que não se calou e fez do rompimento novas possibilidades de transmissão. Sua quebra de paradigmas, devidamente pontuada por aquela coordenadora, continua a nutrir e a abrir caminhos. Que possamos nós também, no tempo presente, questionar, duvidar, romper, criar e estarmos atentos ao novo, mesmo quando o fim já esteja se anunciando. Seja na história, na vida ou em uma aula de Psicanálise. Pois, afinal, não seria a própria Psicanálise um convite ao questionamento e à reinvenção?